Reflexões sobre os 50 anos do Grips Theater de Berlim
(Versão reduzida da palestra de Stefan Fischer-Fels no Simpósio do Grips “Ao lado da criança”, em 12 de junho de 2019)
O respeito em relação à criança é a base do nosso trabalho. O teatro para crianças propõe a mesma indagação que o “teatro adulto”: Como nós queremos viver juntos no futuro? O teatro para crianças em si é parte da concretização dos direitos da infância. Ele é um “espaço seguro” para a alma e para o corpo da criança. Nos países da Europa ocidental nós temos, comparado a outras regiões do mundo, condições fantásticas de criar teatro para crianças e jovens. Nós devemos usar nossos privilégios para irmos além, experimentar o novo, ultrapassar os limites do que é possível no teatro para a infância e juventude – e trabalhar em colaborações internacionais.
O teatro é sempre mais do que uma simples apresentação. Ele é uma Obra de Arte Completa (“Gesamtkunstwerk”) que emite sinais para a sociedade e, ao fazer isso, influencia e transforma essa sociedade, passo a passo. O teatro deve se tornar um modelo para a sociedade futura:
Vamos lançar um olhar sobre o público, sobre as pessoas que trabalham em teatro e nos projetos de teatro para crianças.
Cerca de 70% do teatro para crianças na Alemanha baseia-se no contato com as escolas. Essa é uma base fantástica. Mas o direito da criança experienciar cultura é mais bem atingido quando crianças e jovens vão ao teatro por iniciativa própria. Na Alemanha, nós estamos muito distantes disso. Nós precisamos de estratégias como:
– Ocuparmos espaços públicos
– Participação de jovens em decisões estruturais
– Mais espetáculos “jovens” furiosos e loucos (feitos por jovens artistas), menos “educação”
Os teatros na Alemanha estão tornando-se cada vez mais “centros culturais”, pontos de encontro, lugares de diálogo para uma sociedade internacional e transcultural, que conversa entre si em vez de brigar uma com a outra. Nós testemunhamos mudanças fundamentais nas estruturas e estratégias políticas, econômicas e sociais das nossas vidas globalmente, mudanças que contagiam e afetam nossas crianças. Nós precisamos entender estas “transformações”; depois observar as consequências para a realidade das crianças – e então encontrar uma expressão artísticas para falarmos sobre isso.
Poderíamos, por exemplo, oferecer a crianças e jovens a consciência de que a riqueza e prosperidade dos países da Europa Ocidental é resultado de um longo processo de exploração global violenta de outras culturas – um processo que continua acontecendo. Pankay Mishra fala sobre isso em seu livro “Idade da Raiva”; ele diz que agora os países ocidentais estão recebendo a conta: refugiados, catástrofe climática, o populismo racista global, etc. O “modelo” dos países ocidentais já não tem mais credibilidade quando muros são construídos e seres humanos são mortos apenas para que salvemos nossa riqueza.
Um dos temas centrais do século 21 é a diversidade. O público alemão é muito diverso. O teatro para crianças e jovens está bem preparado para esta diversidade, no que diz respeito a propostas e pessoas? Mark Terkessidis, dez anos atrás, escreveu sobre a “alfabetização intercultural da sociedade” como uma necessidade. Quem está falando nos nossos palcos? Quem está trabalhando como dramaturgos, diretores artísticos, professores, atores, diretores, etc.? A diversidade ainda não é algo evidente na Alemanha.
Colonialismo e diversidade são temas para histórias que devem ser contadas no teatro. Nós também devemos falar sobre a crise da democracia. Nós temos que aprender uma nova linguagem para a comunicação entre diferentes comunidades. A tarefa do teatro é misturar “bolhas” diferentes e propor o diálogo entre elas, por exemplo, através da participação de crianças em processos artísticos, como um laboratório democrático que pode funcionar como um treino para as relações humanas.
A digitalização é um tema atual. Especialmente para crianças. Elas já estão vivendo em dois mundos. Nós entendemos o que acontece no “outro lado”? Como nós estamos refletindo a digitalização no nosso teatro? Há pouco eu li o capítulo sobre “Inteligência Artificial” no livro de Youval Noah Harari “21 palestras sobre o século 21”. Compreendi que no futuro próximo haverá novas e radicais questões éticas como um desafio para o teatro.
Todo o mundo fala sobre “mudanças climáticas”. Hoje os jovens estão lançando a pergunta se nós, adultos, proclamando mensagens idealistas no palco, ao mesmo tempo estamos deixando uma herança infame para a próxima geração. “Sextas-feiras pelo Futuro” é um movimento que pergunta aos adultos: O que vocês estão fazendo? Onde vocês estiveram nos últimos 30 anos? A força desta pergunta deve nos forçar a pensar sobre nosso comportamento, nosso trabalho artístico e nossas vidas, antes de falarmos sobre “mudar o mundo” para as crianças.
A questão de “gênero” e o debate sobre o “MeToo” (“EuTambém”) já é um grande tema no teatro. Mas e no teatro para crianças e jovens? Que tipo de modelos somos nós para a “justiça de gênero”? Quais heróis e heroínas são mostrados no palco? Como nós mostramos meninas e meninos, mães e pais, professores no palco? Que tipo de atores estão engajados no teatro para a infância e juventude? Nós mostramos clichês ou imagens diferenciadas do masculino e do feminino?
Lançamos sinais em todos os lugares e eles tem um impacto sobre as crianças.
Por tudo isso, nós precisamos de inovação.
Talvez nós precisemos esquecer nosso velho conhecimento, que não nos ajuda a entender as mudanças gigantescas que nós estamos vivendo. DESAPRENDER é um conceito estratégico de “gerenciamento de mudança”, que ajuda na liberação do cérebro, abrindo-o para novos pensamentos. Inovação significa lutar por novas ideias, trilhar caminhos que ninguém até agora trilhou e encontrar uma expressão contemporânea. Cada nova geração impulsiona a mudança no mundo e no teatro. É seu direito. A tarefa do teatro é aceitar e refletir estes novos impulsos. Nossa tarefa é não apenas escutar as crianças, mas também entender as direções e tendências dos desenvolvimentos sociais, para encontrarmos palavras e imagens que respondam à pergunta das artes: O que significa ser humano?
Estamos falando sobre a “grande transformação da sociedade” – como nós fazemos disso arte? Esta é a única tarefa que nós temos. O trabalho artístico implica pesquisa, invenção, radicalismo, o questionamento do “estabelecido”. Como nós podemos fascinar nosso público sem apresentar a eles apenas “fast-food”? Questões complexas, linguagem diferenciada, estratégias pouco habituais de narração – tudo isso é possível se o público for conduzido a experimentar, a decodificar complexos códigos artísticos. Esta é a demanda educacional que devemos atender. Pesquisa por novas ideias e novas formas de vivermos juntos em uma sociedade que já é diversa. Não há respostas completas. O que há é a experimentação e o desenvolvimento de novas estratégias artísticas.
A questão mais importante diz respeito à qualidade. Precisamos do melhor no teatro para crianças e jovens. Por isso precisamos convocar os melhores autores, diretores e atores para este teatro, a começar pelo sistema de formação de artistas e chegando ao “mundo das estrelas” do teatro adulto. Precisamos desenvolver programas para aperfeiçoar os direitos da infância à “grande arte” no teatro para crianças e jovens.
As próprias instituições teatrais são escravas do currículo escolar e das expectativas conservadoras de professores. Somos de fato livres e independentes no nosso trabalho artístico? Quais são os nossos conceitos para desafiar estética e politicamente a escola?
A infância em países industrializados não é nenhum paraíso; ela é um centro de alta performance, com entretenimento eventual, para lidar com a pressão da meritocracia.
O teatro está envolvido. Vivemos sob o domínio da economia. Temos vender ingressos. Somos escravos da renda e da capacidade de utilização. Não batalhadores pela pesquisa, experimentação, curiosidade. Estamos prontos para lutar por um trabalho artístico pouco habitual, narração não-linear de histórias, mensagens ambivalentes? Estamos prontos a admitir nossa própria incerteza? Estamos prontos para discussões controversas? Estamos prontos para proteger nossos artistas?
Nós temos um problemas de credibilidade ao falarmos sobre “direitos das crianças” e “um outro mundo é possível” – enquanto vivemos e agimos de modo diferente. Cada cena sobre o palco é um modelo. Qual conceito é apropriado para as crianças? “Você só será amado se puder mostrar sua fraqueza sem provocar a força”. – Theodor W. Adorno, em “Minima Moralia”.
As crianças têm o direito de vivenciar as artes e a cultura, não o direito a que o teatro resolva seus problemas. Teatro tem a ver com empatia, emoção, treino da compaixão, para estarmos prontos para o diálogo, nestes tempos em que pessoas dogmáticas governam. Não temos que estar certos – este é o privilégio mais maravilhoso no campo do teatro. O teatro é capaz de escutar outras opiniões, entrar em conflito, lançar perguntas em vez de respostas.
Como fazedores de teatro nós temos a responsabilidade de fazer o novo e complicado acontecer. Alguns espetáculos estão longe das expectativas. Nós temos que torná-los possíveis. Com muita frequência nós deixamos isso para o “mercado” – pais, professores, etc. Se algo não funciona imediatamente – logo será excluído da programação. Temos receio de perder recursos. Temos receio de vender poucos ingressos. Temos receio de ser politicamente incorretos. Medo e pressão não são os melhores conselheiros para aqueles que advogam os direitos das crianças e que querem encorajá-las através do teatro. Devemos questionar o medo; devemos discutir a controvérsia de forma pacífica. A próxima geração vai ser influenciada pelos temas e pela coragem que tivermos para apresentar novas estéticas às crianças. Todos os meios estéticos são apropriados para as crianças. Elas seguirão cada caminho se entenderem as regras.
Há um texto, escrito por Walter Benjamin, chamado “Ano da história”, que lança um olhar sobre a pintura de Paul Klee “Angelus Novus”. “Sua face está voltada para o passado. Onde nós percebemos uma cadeia de eventos, ele vê uma única catástrofe que empilha escombros sobre escombros e os arremessa aos seus pés. O anjo gostaria de ficar, despertar os mortos, e reintegrar o que foi despedaçado. Mas a tempestade está soprando do Paraíso; ela tomou suas asas com tal violência que o anjo já não pode mais fechá-las. A tempestade o impulsiona de modo irresistível rumo ao futuro, para o qual ele tem suas costas voltadas, enquanto a pilha de destroços diante dele cresce em direção ao céu. A tempestade é o que chamamos progresso.”
Querido Grips Theater: Permitam-se serem levados pela tempestade. Vejam adiante. Para o espaço aberto.
– Stefan Fischer-Fels, nascido em 1964 em Berlim, trabalhou junto ao Grips Theater de Berlim entre 1993-2003 como professor e dramaturgista, e entre 2011-2016 como diretor artístico. Desde 2016 é Diretor Artístíco do Junges Schauspiel Düsseldorf. Desde 2011 é membro do Comitê Executivo da ASSITEJ Internacional.
Tradução: Cleiton Echeveste